GAU: A GALERIA SAIU À RUA
A edição de 2015 da Feira do Livro de Lisboa teve vários visitantes inesperados. Não eram livros nem livreiros, mas recriavam histórias de literatura lusófona, em forma de vidrão. Usar os contentores arredondados de recolha de embalagens de vidro como suporte destas peças de arte urbana pode parecer inusitado, mas trata-se de mais uma iniciativa da GAU – Galeria de Arte Urbana, um estrutura orgânica da câmara municipal de Lisboa, para promover este tipo de arte na cidade.
Neste caso, os vidrões em mostra na Feira representam uma pequena parte da colecção de 100 contentores dedicados à literatura lusófona, numa parceria entre a GAU e o grupo editorial Leya. Através de uma convocatória à decoração destes equipamentos lançada em Abril, qualquer pessoa, com ou sem experiência em street art, poderia fazer uma proposta de pintura, com uma interpretação pessoal de um autor, de um livro ou de um excerto literário, de entre os títulos editados pela Leya e pré-seleccionados pela editora. A iniciativa apresentada na Feira do Livro não é exemplo único: nos últimos anos, os lisboetas habituaram-se a ver, cada vez mais, estes vidrões coloridos e brincalhões, por toda a cidade. Mas há também camiões do lixo decorados a rigor, além das grandes fachadas e murais que são já presença rotineira em Lisboa. Criada em 2008, a GAU já apoiou mais de 300 peças de arte urbana em Lisboa. Só no que diz respeito a vidrões intervencionados, já existiam 100 pelas artérias da capital portuguesa, antes desta nova convocatória Leya. São equipamentos que resultam da abertura de propostas anuais, dinamizada pela GAU, numa metodologia que a entidade tem vindo a adoptar deste o seu lançamento. É também assim que funciona a ocupação dos painéis da Calçada da Glória, que servem de montra à exposição anual de arte urbana de Lisboa. Paredes meias com os carris do ascensor amarelo da Glória, na descida entre o miradouro de São Pedro de Alcântara, os painéis representam a galeria oficial da autarquia para a arte urbana. Os trabalhos expostos variam de ano para ano, por convocatória, podendo ser vistas peças de autores nacionais e internacionais. Já os camiões do lixo tiveram os primeiros sprays de arte urbana em 2011, por autoria de MAR, Maria Imaginário, Miguel Januário, RAM e SLAP. Aqui, para além de facilitar o contacto do público com esta corrente artística, o objectivo foi também valorizar o trabalho de recolha do lixo, dando-lhe nova cara e brilho. Em 2014, por ocasião das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril, a GAU repetiu a experiência e cinco camiões do lixo foram suporte de pinturas de street art da autoria de Fábio Colaço, Hugo Lucas, Miguel Brum, Skran e Vanessa Teodoro. ACUNPUNCTURA URBANA O organismo tem, actualmente, uma equipa de oito pessoas, com uma missão que vai além de encontrar spots próprios para a produção de peças. Desde a resposta à solicitação de artistas nacionais e estrangeiros que querem pintar em Lisboa, à sensibilização dos cidadãos para a importância da arte urbana, passando pelo registo em arquivo fotográfico de todas as intervenções na cidade, apoio à investigação académica nesta área e partilha de boas-práticas, numa rede internacional de Criatividade Urbana, são várias as vertentes de trabalho da GAU. Depois da promoção de grandes fachadas, como as peças da avenida Fontes Pereira de Melo, em 2010 (referenciadas no top 10 de arte urbana do jornal britânico The Guardian para esse ano), a lógica de intervenção da GAU tem vindo a mudar nos últimos tempos. A inclusão social tem sido, cada vez mais, palavra de ordem nos corredores antigos do palácio do Machadinho, que alberga a divisão de Património Cultural da autarquia lisboeta. “Neste momento, já temos imensas peças de arte urbana e estamos a apostar em acções de maior acupunctura urbana, num programa mais educativo, agir dentro dos bairros”, explica Inês Machado, técnica da GAU. O que significa isto? Que continuarão as pinturas de grande impacto – como as emblemáticas intervenções de Vhils ou o projecto “Rostos do Muro Azul”, que reúne 60 obras no muro circundante das instalações do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa –, mas as atenções da GAU estão agora concentradas em projectos de diferente dimensão. Chegar aos bairros municipais, promover a integração e convivência de diferentes comunidades no mesmo espaço e devolver usos de lazer a espaços urbanos problemáticos. A tarefa assume-se como hercúlea mas, acima de tudo, exige paciência e um trabalho prolongado no tempo. “As grandes fachadas têm um impacto imenso, mas este tipo de mais-valia para a cidade consegue-se trabalhando no modelo da tal acupunctura urbana, em cada bairro, conhecendo as pessoas”, distingue a especialista. Para a especialista, o “gesto de criação artística” trazido pela arte urbana permite “esbater diferenças sociais, culturais, económicas e etárias”. E, como exemplo, lembra a intervenção da GAU do Bairro do Armador, em Chelas. Numa praça comummente usada para tráfico de droga e prostituição, a população voltou a reivindicar o espaço público para lazer, durante um fim-de-semana, através de uma intervenção de arte urbana. “O facto de estarmos a criar algo na parede esbateu completamente as diferenças culturais”, explica Inês Machado, lembrando que as várias comunidades e etnias do bairro contribuíram para o trabalho final dos artistas convidados, ultrapassando divergências e conflitos quotidianos. Nestes trabalhos de intervenção social não se trata, no entanto, de apenas chegar lá e pintar. Antes dessa fase, a GAU já realizou várias sessões de esclarecimento e sensibilização sobre o que é, afinal, a arte urbana. O resultado vai além da peça de arte: “há uma valorização do território e o morador, que não tinha grandes laços de pertença, de repente passou a fazer parte dele, criou-o”. O consenso acaba por ser aqui fundamental: “não vale a pena impor nada a ninguém”, avisa Inês Machado, até porque “há imensos locais disponíveis pela cidade, não vale a pena criar conflito no espaço urbano”. EXEMPLO ÚNICO O nascimento da GAU foi, no entanto, envolto em polémica. A estrutura nasceu dias depois de uma operação de limpeza em larga escala das ruas do Bairro Alto, onde, entre tags e rabiscos sem valor, “havia também bom graffiti, nomeadamente até peças internacionais”, reconhece Inês Machado. A limpeza foi indiscriminada – e tudo o que estava registado nas paredes da zona desapareceu. Os painéis de 9x3 metros da Calçada da Glória foram a plataforma de ‘substituição’ arranjada pela autarquia. Da anarquia do Bairro Alto, passou-se para a ordem e arrumação em rectângulos. Para a técnica da GAU, este foi um “gesto do município de reconhecimento do graffiti como uma expressão artística válida, dedicando um espaço próprio”, neste âmbito. Com o evoluir da arte urbana e o despertar do interesse público, a GAU foi dando aos artistas, outros espaços públicos por Lisboa, além de assegurar a gestão de toda a arte pública da cidade. O modelo de apoio da autarquia é uma experiência única no mundo, tendo sido recebida com surpresa noutras geografias. “O que sentimos, nos nossos contactos internacionais, é que ficavam muito estupefactos quando percebiam que a galeria fazia parte da câmara [municipal]; ficavam espantados com esta abertura do município de Lisboa e com a estratégia de coexistência harmoniosa do espaço público, sempre em respeito do património cultural”, comenta Inês Machado. Para encontrar um caso semelhante, embora a uma escala maior, é preciso atravessar um oceano. Em Filadélfia, nos Estados Unidos, um modelo de gestão dos graffitis com financiamento publico-privado conta já com 30 anos. Primeiro com o nome Philadelphia Anti-Graffiti Network, com a missão de canalizar os graffiters para um esforço artístico que beneficiasse a comunidade; depois, em 1996, com o nascimento do programa “Mural Arts”, uma plataforma que mobiliza hoje uma equipa de cerca de 50 pessoas na promoção de projectos de arte urbana. Para explicar – e espalhar - a experiência de Lisboa na gestão da arte urbana, a GAU é uma das entidades fundadoras da Rede para a Criatividade Urbana, constituída em 2010. Entre encontros internacionais e intercâmbio de artistas, as várias cidades europeias envolvidas tentam perceber qual a melhorar forma de lidar com este fenómeno artístico. Longe vai o tempo da proibição pura e simples, mas, como Inês Machado reconhece, “na arte urbana não existe nenhum livro de boas-práticas”. |